Luiz Carlos Nogueira
Para conhecimento dos leitores, transcrevo o voto do desembargador convocado Adilson Vieira Macabu, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), referente ao caso julgado em 28 de março de 2012 pela Terceira Seção do STJ, que ainda será publicado no Diário de Justiça e que tratou sobre as provas que podem ser usadas para caracterizar o crime de embriaguez do motorista que se envolver em acidentes de trânsito, ficando definido que somente o bafômetro e o exame de sangue podem ser aceitos.
Este é o texto na íntegra:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.111.566 - DF (2009/0025086-2)
RELATOR | : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE |
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R.P/ACÓRDÃO | : MINISTRO | ADILSON | VIEIRA | MACABU |
| (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ) |
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RECORRENTE | : MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E | |||
| TERRITÓRIOS |
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RECORRIDO | : EDSON LUIZ FERREIRA |
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ADVOGADO | : MARCELO TURBAY FREIRIA E OUTRO(S) |
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INTERES. | : DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO - "AMICUS CURIAE" | |||
ADVOGADO | : RÔMULO COELHO DA SILVA - DEFENSOR PÚBLICO | |||
| DA UNIÃO |
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EMENTA
PROCESSUAL PENAL. PROVAS. AVERIGUAÇÃO DO ÍNDICE DE ALCOOLEMIA EM CONDUTORES DE VEÍCULOS. VEDAÇÃO À AUTOINCRIMINAÇÃO. DETERMINAÇÃO DE ELEMENTO OBJETIVO DO TIPO PENAL. EXAME PERICIAL. PROVA QUE SÓ PODE SER REALIZADA POR MEIOS TÉCNICOS ADEQUADOS. DECRETO REGULAMENTADOR QUE PREVÊ EXPRESSAMENTE A METODOLOGIA DE APURAÇÃO DO ÍNDICE DE CONCENTRAÇÃO DE ÁLCOOL NO SANGUE. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE.
1. O entendimento adotado pelo Excelso Pretório, e encampado pela doutrina, reconhece que o indivíduo não pode ser compelido a colaborar com os referidos testes do 'bafômetro' ou do exame de sangue, em respeito ao princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se autoincriminar (nemo tenetur se detegere). Em todas essas situações prevaleceu, para o STF, o direito fundamental sobre a necessidade da persecução estatal.
2. Em nome de adequar-se a lei a outros fins ou propósitos não se pode cometer o equívoco de ferir os direitos fundamentais do cidadão, transformando-o em réu, em processo crime, impondo-lhe, desde logo, um constrangimento ilegal, em decorrência de uma inaceitável exigência não prevista em lei.
3. O tipo penal do art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro é formado, entre outros, por um elemento objetivo, de natureza exata, que não permite a aplicação de critérios subjetivos de interpretação, qual seja, o índice de 6 decigramas de álcool por litro de sangue.
4. O grau de embriaguez é elementar objetiva do tipo, não configurando a conduta típica o exercício da atividade em qualquer outra concentração inferior àquela determinada pela lei, emanada do Congresso Nacional.
5. O decreto regulamentador, podendo elencar quaisquer meios de prova que considerasse hábeis à tipicidade da conduta, tratou especificamente de 2 (dois) exames por métodos técnicos e científicos que poderiam ser realizados em aparelhos homologados pelo CONTRAN, quais sejam, o exame de sangue e o etilômetro.
6. Não se pode perder de vista que numa democracia é vedado ao judiciário modificar o conteúdo e o sentido emprestados pelo legislador, ao elaborar a norma jurídica. Aliás, não é demais lembrar que não se inclui entre as tarefas do juiz, a de legislar.
7. Falece ao aplicador da norma jurídica o poder de fragilizar os alicerces jurídicos da sociedade, em absoluta desconformidade com o garantismo penal, que exerce missão essencial no estado democrático. Não é papel do intérprete-magistrado substituir a função do legislador, buscando, por meio da jurisdição, dar validade à norma que se mostra de pouca aplicação em razão da construção legislativa deficiente.
8. Os tribunais devem exercer o controle da legalidade e da constitucionalidade das leis, deixando ao legislativo a tarefa de legislar e de adequar as normas jurídicas às exigências da sociedade. Interpretações elásticas do preceito legal incriminador, efetivadas pelos juízes, ampliando-lhes o alcance, induvidosamente, violam o princípio da reserva legal, inscrito no art. 5º, inciso II, da Constituição de 1988: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
9. Recurso especial a que se nega provimento.
ACÓRDÃO
Retomado o julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior, rejeitando a questão de ordem proposta pelo Sr. Ministro Og Fernandes, mantendo a apreciação do presente recurso especial como representativo de controvérsia; após
o voto do Sr. Ministro Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS), acolhendo a questão de ordem; após o voto do Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador Convocado do TJ/RJ), rejeitando a questão de ordem; após o voto do Sr. Ministro Gilson Dipp, rejeitando a questão de ordem; após o voto da Sra. Ministra Laurita Vaz, rejeitando a questão de ordem e após o voto do Sr. Ministro Jorge Mussi, rejeitando a questão de ordem, Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Senhores Ministros da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por maioria em rejeitar a questão de ordem.
O Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze, na sessão do dia 14/03/2012, votou pela rejeição da questão de ordem.
Vencidos, quanto à questão de ordem, os Srs. Ministros Og Fernandes e Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS).
Retomado o julgamento, quanto ao mérito, após o voto-vista do Sr. Ministro Og Fernandes negando provimento ao recurso, acompanhando a divergência inaugurada pelo Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador Convocado do TJ/RJ); após o voto do Sr. Ministro Sebastião Reis Júnior, no mesmo sentido e após o voto-desempate da Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Presidente da Terceira Seção, negando provimento ao recurso, a Seção por maioria, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembagador Convocado do TJ/RJ), que lavrará o acórdão.
Vencidos os Srs. Ministros Marco Aurélio Bellizze (Relator), Vasco Della Giustina (Desembargador Convocado do TJ/RS), Gilson Dipp e Jorge Mussi.
Lavrará o acórdão o Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador Convocado do TJ/RJ). Votaram com o Sr. Ministro Adilson Vieira Macabu (Desembargador convocado do TJ/RJ) a Sra. Ministra Laurita Vaz e os Senhores Ministros Og Fernandes, Sebastião Reis Júnior e a Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Presidente da Terceira Seção, em voto-desempate.
Presidiu o julgamento a Sra. Ministra Maria Thereza de
Assis Moura.
Brasília (DF), 28 de março de 2012(Data do
Julgamento).
Ministra Maria Thereza de Assis Moura
Presidente
Ministro Adilson Vieira Macabu (desembargador Convocado do Tj/rj) Relator
RECURSO ESPECIAL Nº 1.111.566 - DF (2009/0025086-2) (f)
RELATOR | : MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE |
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RECORRENTE | : MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E | |
| TERRITÓRIOS |
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RECORRIDO | : EDSON LUIZ FERREIRA |
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ADVOGADO | : MARCELO TURBAY FREIRIA E OUTRO(S) |
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INTERES. | : DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO - "AMICUS CURIAE" | |
ADVOGADO | : RÔMULO COELHO DA SILVA - DEFENSOR PÚBLICO | |
| DA UNIÃO |
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| VOTO-VENCEDOR |
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O | EXMO. SR. MINISTRO ADILSON VIEIRA | MACABU |
(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ):
Trata-se de recurso especial interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS contra o v. acórdão do Tribunal de Justiça da mesma unidade da federação, cuja ementa é a seguinte:
"HABEAS CORPUS – CONSTATAÇÃO DE EMBRIAGUEZ – ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS – ART. 306 DO CTB – CONCENTRAÇÃO DE ÁLCOOL NO SANGUE – EXAMES TÉCNICOS ESPECÍFICOS – IMPRESCINDIBILIDADE.
I. A antiga redação do art. 306 do CTB exigia apenas que o motorista estivesse sob a influência de álcool, sem indicar quantidade específica. Simples exame clínico poderia perfeitamente atender à exigência do tipo.
II. A Lei 11.705/08 incluiu na redação do artigo a 'concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas' ou 'três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões' (Art. 2º do Decreto 6.488 de 19.06.08).
III. A prova técnica é indispensável e só pode ser aferida com o uso do chamado 'bafômetro' ou com o exame de dosagem etílica no sangue.
IV. O legislador procurou inserir critérios objetivos para caracterizar a embriaguez, mas inadvertidamente criou situação mais favorável àqueles que não se submeterem aos exames específicos. A lei que pretendia, com razão, ser mais rigorosa, engessou o tipo penal.
V. Se a lei é mais favorável, retroage para tornar a conduta atípica.
VI. Ordem concedida para trancar a ação penal, por ausência de justa causa." (fls. 80/81)
Inconformado, o Parquet interpôs o apelo nobre ao fundamento de que o decisum violaria os termos dos arts. 43, I, e 157, do Código de Processo Penal, bem como o art. 306, do Código Nacional de Trânsito.
Assevera-se no recurso que, a despeito da inviolabilidade ao princípio constitucional que veda a autoincriminação, a sociedade e seu representante legal não podem ficar à mercê do condutor do veículo para a deflagração da ação penal, caso ele recuse-se a realizar o exame do bafômetro ou a coleta de sangue.
O eminente Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator originário, admitiu o processamento deste recurso como representativo da controvérsia, tramitando, a partir de então, nos moldes do art. 543-C, § 2º, do CPC, e art. 2º, da Resolução n.º 8/08, deste Tribunal (recurso repetitivo).
Instado a manifestar-se, o Ministério Público Federal opinou pelos conhecimento e provimento do especial, em parecer de fls. 273/288, cuja ementa está reproduzida no voto do eminente Ministro relator.
Admitida como amicus curiae, a Defensoria Pública da União alega a impossibilidade do conhecimento do recurso pela incidência dos enunciados n.º 7 da Súmula desta Corte e n.º 284 do Supremo Tribunal Federal. No mérito, reforça os argumentos defensivos já trazidos nos autos.
Apresentado o feito a julgamento, o eminente Ministro relator Marco Aurélio Bellizze, por sucessão do relator originário, realizou longo e cuidadoso estudo da matéria, lançando voto com fundamentos jurídicos e sociais relevantes.
Inicialmente, cumpre agradecer ao eminente Ministro relator a disponibilização da minuta de seu voto, ainda que pendente de revisão, para que a quaestio pudesse ser analisada neste pedido de vista, ressaltando-se, assim, que os trechos aqui eventualmente
citados ainda podem sofrer alguma alteração de redação sem, contudo, modificarem-se os seus fundamentos e teses.
Em suma, o eminente relator dá provimento ao recurso ministerial com base nos seguintes fundamentos:
1 - Há divergência jurisprudencial entre a Quinta Turma - que admite outros meios de prova para a instauração de ação penal nos delitos de trânsito, quando o condutor se apresenta visivelmente alcoolizado, e a Sexta Turma - que entende que a limitação dos meios de prova admitidos para a verificação da embriaguez impede a proposição da persecutio criminis.
2 - Com a alteração legislativa da chamada 'Lei Seca', o delito em questão tornou-se crime de perigo abstrato, não havendo mais falar em capacidade lesiva ou possibilidade de materialização de resultado danoso.
3 - A mens legis não buscou tornar mais benéfico o fato-crime da direção de veículo sob o efeito de bebida alcoólica ou outra substância de efeitos análogos, tendo como objetivo a proibição da conduta, independentemente da quantidade de alcoolemia.
4 - A interpretação a ser realizada pelo Estado-Juiz deve atender, primeiro, aos anseios da sociedade, expressos na construção da lei (mens legislatoris), não se admitindo que os direitos individuais se tornem absolutos e se sobreponham à necessária segurança e ao equilíbrio da sociedade, ainda mais quando se busca, in casu, a redução das mortes no trânsito. Assim agindo, tutela-se, não só o
"trânsito seguro, mas também, em última análise, a vida, a integridade física e a propriedade das pessoas".
5 - Não há direitos absolutos, "e para o pleno gozo desta liberdade individual, necessário se faz o seu justo equilíbrio com o direito coletivo da segurança". Assim, assevera o eminente relator que, nesta hipótese, deve-se submeter o direito individual ao bem-estar da coletividade.
6 - A vedação à autoincriminação (nemo tenetur se detegere), tendo sido galgada ao patamar constitucional, ainda que pela conjugação de outros princípios, deve ser analisada sob o prisma adequado a cada hipótese no caso concreto, distinguindo-se a participação interventiva invasiva (exame de sangue), forma
colaborativa ativa (bafômetro) ou forma colaborativa passiva (exame clínico).
7 - A obrigatoriedade da submissão ao teste de alcoolemia é amparada pelo Direito, em vários países pautados pelo Estado Democrático de Direito, não sendo neles considerada, como ofensa ao nemo tenetur se detegere, a sua imposição ao cidadão.
Aliás, colhem-se informações atuais de que na França, todo veículo deverá ter, como equipamento obrigatório, um etilômetro para que seja realizado o teste, independentemente da sua apresentação pela autoridade no momento da verificação. Isto é, além de ser obrigatória a sua realização, o próprio condutor deverá apresentar o equipamento ao qual será submetido.
8 - O Código Nacional de Trânsito prevê outras formas de aferição do grau de embriaguez do condutor de veículo, nos termos do art. 277, in verbis:
"Art. 277 - Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado."
9 - O exame clínico, a despeito de não conseguir determinar objetivamente o grau de alcoolemia do indivíduo, pode, ao menos, indicar uma faixa razoável do seu estado, através das reações ou sintomas exteriores por ele demonstradas.
10 - A exigência de exame clínico não violaria o princípio da vedação à autoincriminação por não se tratar de método interventivo ou invasivo, podendo ser realizado, até mesmo, com uma postura passiva do examinado, independente de sua colaboração.
11 - A delimitação de 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue é meramente quantitativa, pois a sintomatologia perquirida no exame clínico atestaria de forma técnica o seu real estado de embriaguez, não importando o grau de concentração da substância em seu organismo.
12 - Informa, ainda, o eminente relator, que a CCJ do Senado Federal aprovou projeto de lei que busca alterar o art. 306, do CTB, exatamente para evitar o esvaziamento do tipo penal e a perda da razão de existir da 'Lei Seca', apresentando como fundamentos, inclusive, precedentes julgados por esta Corte Superior, onde reconheceu-se a imprescindibilidade dos exames técnicos para a propositura de ação penal.
13 - Por fim, entende o eminente relator que somente com a instauração da competente ação penal será possível realizar o devido processo legal, sob o acurado controle do Poder Judiciário, onde poderão ser produzidas as provas sob o arrimo da ampla defesa e da paridade de armas, como convém ao Estado Democrático de Direito.
Considerando a complexidade e a relevância da matéria, a partir dos muito bem lançados fundamentos do voto apresentado, pedi vista para análise adequada das razões de decidir.
É, no essencial, o relatório.
Com todo o respeito devido ao entendimento adotado pelo eminente Ministro Marco Aurélio Bellizze, invocando as máximas vênias, ouso divergir da tese esposada.
A matéria posta em discussão pode ser concentrada, basicamente, em dois pontos principais da controvérsia, dos quais derivam todas as demais questões, quais sejam:
1 - A constitucionalidade da recusa do condutor de veículo em se submeter ao teste de alcoolemia, seja na forma expirada ou pelo exame de sangue, diante do princípio da vedação à autoincriminação (nemo tenetur se detegere).
2 - A possibilidade de utilização de outros meios lícitos de provas para a determinação do estado de embriaguez para a proposição de ação penal pelo delito previsto no art. 306, do Código Trânsito Brasileiro, ante a recusa do examinado.
Acerca do primeiro ponto não há divergência, quer no âmbito desta Corte Superior, ou no seio do Guardião da Constituição.
Assim, o tema relativo ao item 1 não merece, neste momento, ampla digressão a respeito de sua recepção no sistema penal brasileiro ou consagração como norma constitucional de
garantia dos direitos individuais do cidadão, vez que tratado como cláusula pétrea pela Carta Política.
Com efeito, o próprio relator assim afirma em seu voto,
verbis:
"(...)
O apanhado da doutrina e jurisprudência indica que a garantia em exame alcançou, no Brasil, dimensão, extensão e prestígio jamais verificados nos sistemas judiciais com tradição de respeito à dignidade da pessoa humana e ao devido processo legal.
Em suma, o que nos países que dispõem de avançados sistemas jurídicos é relativo, aqui é absoluto.
(...)
O entendimento encampado pela doutrina reconhece que o indivíduo não pode ser compelido a colaborar com os referidos testes do 'bafômetro' ou do exame de sangue, em respeito ao princípio segundo o qual ninguém é obrigado a se autoincriminar (sem qualquer pretensão de exaustividade: LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 8ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, pp. 192 e ss; FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 263; GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES Antonio Scarance. As Nulidades no Processo Penal. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, pp. 77/80 e 127).
Outra também não tem sido a posição esposada pelo Supremo Tribunal Federal com relação a situações semelhantes, embora não idênticas. Tem-se considerado amplo o campo de incidência da garantia em diversas oportunidades, como no caso de fornecimento de padrões gráficos para perícia (HC nº 77.135/SP, Relator o Ministro ILMAR GALVÃO, DJ de 06/11/1998), de participação em reconstituição simulada dos fatos (HC nº 69.026/DF, Relator o Ministro CELSO DE MELLO, DJ de 04/090/1992), de fornecimento de padrões vocais (HC nº 83.069/RJ, Relatora a ministra ELLEN GRACIE, DJe de 12/12/2003), de faltar com a verdade em interrogatório (HC nº 68.929/SP,
Relator Ministro CELSO DE MELLO, DJ de 28/08/1992; HC nº 75.257/RJ, Relator o Ministro MOREIRA ALVES, DJ de 06/10/1995, e, por fim, de se negar a participar de exame de dosagem alcoólica (HC nº 93.916/PA, Relatora a Ministra CARMEN LÚCIA, DJe de 27/06/2008), sendo certo que o último acórdão não logrou identificar a que exames havia o denunciado se oposto.
Uma leitura apurada dos precedentes indica uma tendência de expansão constante da incidência da garantia sem que reste identificada qualquer limitação expressa (BOTTINO, Thiago. O Direito ao silêncio na jurisprudência do STF. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 117/137).
(...)
Como dito linhas atrás, a tensão entre os princípios em conflito reclama uma solução em termos de limites (TROIS NETO, Paulo Mário Canabarro. Direito à não autoincriminação e direito ao silência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p.137), limites estes que hão de passar pelo mesmo crivo da proporcionalidade que, imagino, tenha fulminado a pretensão de obrigatoriedade de submissão do acusado aos exames de sangue e de ar expirado.
Naquelas situações prevaleceu o direito fundamental à não autoincriminação em face do dever de persecução do Estado, que impunha ou um meio de prova interventivo invasivo (exame de sangue) ou um colaborativo ativo (etilômetro). Desta vez, o Estado lança mão de outra medida limitadora daquele direito, no caso, a obrigação de se submeter ao exame clínico, um meio colaborativo passivo, embora possa envolver eventualmente alguma participação ativa do examinando (QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: O princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal. São Paulo, 2003. pp. 260/261)"
Registre-se que o direito de o paciente não produzir prova contra si está inserido nos direitos constitucionais assegurados aos acusados em geral.
Entender de forma diversa, sob o ponto de vista jurídico, é o mesmo que ignorar a positivação do direito ao silêncio, expressamente previsto no art. 5º, inciso LXIII, da Constituição de 1988, na medida em que, no nosso ordenamento legal, o réu não é obrigado a se autoincriminar, segundo o princípio nemo tenetur se detegere, que rege o nosso direito de punir.
Portanto, é inaceitável a tentativa de restringir a liberdade do cidadão, mediante violação de direitos inerentes à personalidade, que constitui um bem constitucionalmente tutelado. Daí a inadmissibilidade de produção de prova em desfavor do paciente, em desacordo com sua vontade, sob pena de violação de um direito que lhe é fundamental.
Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal já decidiu, em inúmeras oportunidades, que o acusado não pode ser compelido a fazer prova contra si mesmo, isto porque não há como se obrigar o suposto autor do delito a fornecer prova que possa, de algum modo, conduzir à caracterização de sua culpa.
Em conclusão, a discussão acerca da impossibilidade de obrigar-se o condutor do veículo a realizar os exames elencados no decreto regulamentador do Código de Trânsito Brasileiro, em razão da incidência do nemo tenetur se detegere, está cabalmente rechaçada, quer pela doutrina pátria, quer pelo pacífico entendimento jurisprudencial.
Dessa forma, passamos à análise do segundo ponto nodal da discussão que ora se impõe a este nobre colegiado.
Ab initio, cumpre trazer à colação os dispositivos legais regentes da quaestio, a fim de traçar-se com a nitidez devida a linha delimitadora do que se está a julgar.
O Código de Trânsito Brasileiro tipifica algumas condutas administrativas ou penais, que determinam o cometimento de infração de cada natureza, bem como os meios de provas legalmente admitidos para tal comprovação. Leia-se, pela ordem:
"Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
Infração - gravíssima; (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses; (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação. (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277."
"Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. (Redação dada pela Lei nº 11.275, de 2006)
§ 1º Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos.(Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 11.275, de 2006)
§ 2º A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor. (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
§ 3º Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008)"
"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública,
estando com concentração de álcool por litro de sangue
igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008)" (grifo nosso)
Para dar efetividade à norma legal, o Poder Executivo editou o Decreto n.º 6.488, de 19 de junho de 2008 (mesma data da entrada em vigor da lei que alterou o CTB), nos seguintes termos:
"Art. 2º - Para os fins criminais de que trata o art. 306 da Lei nº 9.503, de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro, a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia é a seguinte:
I - exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou
II - teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro): concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expirado dos pulmões." (grifo nosso)
Apresentados os dispositivos legais pertinentes ao julgamento da quaestio em exame, é necessária uma análise de seu conteúdo, num exercício de interpretação sistemática, sem qualquer valoração literal ou teleológica, no presente momento.
É certo e induvidoso que o Código de Trânsito Brasileiro prevê, expressamente, a possibilidade de outros meios de prova para a demonstração da embriaguez do condutor de veículo. Da simples leitura do art. 277 colhe-se que o motorista "será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado".
Todavia, algumas considerações merecem apreciação detida de tal dispositivo.
Analisando de forma sistemática, deve-se observar que o art. 165 faz referência direta ao art. 277, para elencar os meios de prova admitidos no âmbito administrativo da Lei. Em contrapartida, o art. 277 refere-se diretamente ao art. 165 para determinar as hipóteses de aplicação de seus meios probatórios, não fazendo qualquer referência ao art. 306.
É evidente que o dispositivo do art. 277 não poderia se referir ao art. 306, mesmo porque ele é anterior a este. É de curial sabença que, em matéria penal, a norma prescrita deve identificar um tipo objetivo, evitando-se, assim, transferir ao intérprete uma margem desnecessária à flexibilização ou mitigação da norma incriminadora ou, de outro giro, sua aplicação exacerbada, além dos limites propostos.
Exatamente por isso, o art. 306 expressamente afasta a aplicação do art. 277 ao definir, no parágrafo único, que caberia ao Poder Executivo federal estipular os níveis de equivalência nos métodos aceitáveis como meio de prova à tipificação da conduta.
O decreto regulamentador, podendo elencar quaisquer meios de prova que considerasse hábeis à tipicidade da conduta, tratou especificamente de 2 (dois) exames por métodos técnicos e científicos que poderiam ser realizados em aparelhos homologados pelo CONTRAN, quais sejam, o exame de sangue e o etilômetro.
Claro que se poderia, ali, incluir o exame clínico e seus critérios, ainda que científicos, para a determinação do grau de embriaguez, mas nesse quesito o administrador preferiu limitar ÚNICA e EXCLUSIVAMENTE a aferição do grau de alcoolemia pelos métodos por ele previstos, vinculando-se, assim, os agentes públicos, bem como o intérprete judiciário, ao Princípio da Legalidade Estrita.
O próprio artigo 277, expressamente, registra que apenas serão admitidos meios técnicos ou científicos, EM APARELHOS HOMOLOGADOS PELO CONTRAN, que permitam certificar o estado de embriaguez.
Ainda que se fizesse uma interpretação extensiva considerando que o exame clínico, realizado por médico, tenha amparos científico e técnico, ele esbarraria num elemento objetivo do
tipo penal do art. 306, qual seja, o índice de 6 decigramas de álcool por litro de sangue.
Assim, passamos ao segundo fundamento de hermenêutica que traremos à discussão.
O tipo penal que ora se discute é formado, entre outros, por um elemento objetivo, de natureza exata, que não permite a aplicação de critérios subjetivos de interpretação.
Aplicar o critério subjetivo a um elemento objetivo desvirtua a natureza do próprio tipo penal e termina por configurar-se num grave erro de premissa que irá macular todo o processo de interpretação.
O art. 306, do CTB, expressamente define como crime a conduta de dirigir veículo em via pública com concentração maior que 6 decigramas de álcool por litro de sangue. Note-se que o grau de embriaguez, aqui, é elementar do tipo penal, não configurando a conduta típica o exercício da atividade em qualquer outra concentração inferior àquela determinada pela lei.
Relativizar um elemento penal objetivo poderia levar esse mesmo intérprete a permitir a persecução criminal em desfavor de um adolescente que, a despeito de ter 17 anos, demonstra preencher todos os requisitos de culpabilidade, sob os mesmos fundamentos de proteger-se a sociedade, a vida humana e o patrimônio. Ou então, deixar de aplicar o prazo prescricional reduzido ao acusado com mais de 70 anos, levando-se em consideração a sua periculosidade ou a gravidade do dano causado pela conduta praticada.
Ambas as hipóteses levam, por consectário lógico, à proteção dos bens mais caros da sociedade, cumprindo a finalidade do Direito Penal, tal qual nos termos do sistema proposto por Claus Roxin.
Assim, torna-se inadmissível a realização de outro meio de prova não previsto na norma incriminadora, o que, efetivamente, fere direitos fundamentais do réu.
Carece de razoabilidade qualquer tentativa de ignorar a construção jurídica elaborada durante séculos para acolher-se posições doutrinárias eventuais, não poucas vezes criticadas e desprovidas de lastro na Constituição da República, que, com certeza,
conduziria ao enfraquecimento do direito e à disseminação da insegurança jurídica.
Não há espaço, mormente em matéria penal, para a vulgarização de princípios consolidados quando se trata de aplicar preceitos legais, dando-lhes sentido diverso daquele desejado pelo legislador. Salta aos olhos que o Judiciário carece de legitimidade para tanto.
Ao interpretar-se a norma jurídica de natureza penal, não se pode inovar no alcance de sua aplicação, substituindo o legislador, mesmo porque, à evidência, essa não é a tarefa do judiciário.
Agir de modo diverso é posicionar-se fora da realidade, numa questionável distorção do papel do juiz, porquanto não lhe cabe usurpar as funções de outro poder, segundo os preceitos que vigoram no Estado Democrático de Direito.
Registre-se, ademais, que a lei não contém palavras inúteis e, muito menos, a Constituição, ao preceituar no seu art. 2°:
"São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário", na conhecida e histórica formulação de Montesquieu.
Em nome de adequar-se a lei a outros fins ou propósitos não se pode cometer o equívoco de ferir os direitos fundamentais do cidadão, transformando-o em réu, em processo crime, impondo-lhe, desde logo, um constrangimento ilegal, em decorrência de uma conduta não prevista em lei. Se o legislador desejar autorizar a persecução criminal em desfavor de uma pessoa, que o faça, modificando a lei, porquanto não compete ao juiz legislar.
Com efeito, cumpre assinalar que o Congresso é livre para estabelecer as regras que estimar necessárias, observado o processo legislativo, e desde que respeitados os princípios proclamados na Constituição Federal.
Em coluna eletrônica, o professor Pierpaolo Cruz Bottini, comentando o início deste julgamento, apresenta interessante arrazoado acerca do tema:
"O STJ já se manifestou em diversas oportunidades pela
necessidade de perícia para comprovar elementos do tipo
penal, como no caso do rompimento do obstáculo que caracteriza o furto qualificado, bem como da nocividade do alimento nos casos do artigo 7º, IX da Lei 8.137/90. Nestes casos, mesmo que evidente a impropriedade do alimento ou o rompimento do obstáculo, a perícia não é substituída pela constatação visual.
Se em tais casos — em que o tipo penal não indica um índice preciso que denote a materialidade do crime — a prova testemunhal não supre a perícia, parece que o mesmo raciocínio é válido para o crime em discussão."
(disponível em http://www.conjur.com.br/2012-fev- 14/direito-defesa-legislativo-tornar-efetiva-lei-seca, consultado em 23/02/2012, às 16:14 horas)
Releva notar, sobre a questão em análise, que a hermenêutica penal está pautada por critérios e padrões peculiares que diferem dos demais ramos do Direito.
Insta asseverar que não há justificativa para o desvio de finalidade que se deseja imprimir ao conteúdo da norma. Não se pode perder de vista que numa democracia é vedado ao judiciário modificar o conteúdo e o sentido emprestados pelo legislador, ao elaborar a norma jurídica. Aliás, não é demais lembrar que não se inclui entre as tarefas do juiz, a de legislar.
Na lição de Alexandre de Moraes, em seu Direito Constitucional, colhemos que "só por meio das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral" (MORAES, Alexandre de. DIREITO CONSTITUCIONAL, Ed. Atlas, 24ª ed., pp. 41).
Nos dizeres de Basileu Garcia, citado por Luiz Vicente Cernicchiaro, em sua obra Estrutura do Direito Penal:
"a analogia é um método de ampliação e extensão do âmbito da norma jurídica: aplica-se a um fato não previsto por lei, uma lei destinada a prever fatos semelhantes. É suficiente esse conceito para se ver que a sua utilização no campo repressivo, para o fim de punir, aberra inteiramente do princípio da legalidade dos delitos e das penas, e que ela
não pode ser consentida no Direito Criminal dos povos que o inscrevem nos pórticos da sua legislação". (grifo nosso)
Sempre oportuno lembrar o texto do eminente Ministro desta casa, Francisco de Assis Toledo, em seus Princípios Básicos de Direito Penal, ao ensinar que "corolário do princípio da legalidade é a proibição da analogia para fundamentar ou agravar a pena" (fl. 26).
Afirma o saudoso professor: "estando regulamentada em lei uma situação particular, aplica-se por analogia essa mesma regulamentação a outra situação particular, semelhante mas não regulamentada. É uma conclusão que se extrai do particular para o particular", procedimento claramente incompatível com a defesa dos interesses públicos, inerentes ao Direito Penal e ao mister do Juiz no Estado Democrático de Direito.
Nessa esteira interpretativa do conteúdo da norma penal incriminadora, cumpre enfatizar-se que em nome da consternação popular, das aspirações sociais, clamando por alterações nas normas jurídicas, da insegurança social ou de outros motivos encontrados na sociedade, torna-se incabível descaracterizar os princípios que sempre serviram de diretriz ao Direito Penal Brasileiro.
Ora, não se apresenta adequado que uma lei, aprovada pelo Congresso e sancionada pelo Presidente da República, segundo o modelo bicameral vigente no Brasil, receba dos Tribunais uma interpretação que, na prática, conduza à violação de direitos fundamentais.
Não é demasiado asseverar, com a contundência indispensável, que nem mesmo a cultura repressiva que emerge, assustadoramente, no nosso país, possui a força legitimadora e necessária para conduzir ao abandono de preceitos jurídicos inarredáveis.
O juiz não foi investido na sua nobre missão de julgar para, olvidando-se dos direitos fundamentais, transformar-se em ativista judicial.
Em matéria penal, não se pode caminhar em terreno movediço, deixando ao intérprete uma ampla margem de
discricionariedade que, em muitos casos, se confunde com arbitrariedades, sob a falsa aparência de decisões fundamentadas.
Assinale-se que o desejo crescente de criminalização, que grassa em inúmeros segmentos sociais, não tem o condão de transformar milhares de brasileiros em réus, sem observância dos limites traçados pelo legislador por ocasião da elaboração da lei. Esse não é o fim almejado pela Constituição. Muitas vezes, os erros interpretativos podem conduzir a soluções desastrosas. Cabe ao judiciário corrigir os desvios que levam à fragilização do modelo constitucional brasileiro.
As múltiplas tendências que vicejam numa sociedade, mesmo porque ela é dinâmica, devem ser auscultadas pelos legisladores que, seguindo o processo legislativo prescrito na Constituição, elaborarão normas jurídicas mais adequadas ao tempo em que vivemos e aí, sim, os magistrados exercerão a jurisdição, dando solução aos conflitos que lhe forem submetidos, sem perder de vista os limites fixados na lei.
O que há, na prática, e isso não se constitui, apenas, num fenômeno brasileiro, pois trata-se de uma constatação, é uma queda significativa na qualidade das leis. Contudo, tal circunstância não dá ao juiz o poder de legislar nem de substituir o legislador na tarefa que lhe é peculiar e constitucionalmente prevista.
Falece ao aplicador da norma jurídica o poder de fragilizar os alicerces jurídicos da sociedade, em nome de uma equivocada interpretação do direito, em absoluta desconformidade com o garantismo penal, que exerce missão essencial no estado democrático.
O consagrado professor constitucionalista J. J. Gomes Canotilho ensina que "a tarefa de interpretar e aplicar princípios jurídicos encontra insuperável obstáculo no sentido comum das palavras", e segue, "não é válida a interpretação ou aplicação da norma que construa sentido contra o texto expresso do dispositivo, ou seja, do artigo da lei".
Na excelente obra, Teoria dos Princípios, o jurista Humberto Ávila esclarece a questão relativa aos limites interpretativos que se impõem ao Magistrado, ao aplicar a norma legal, verbis:
"O Poder Judiciário e a Ciência do Direito constroem significados, mas enfrentam limites cuja desconsideração geram um descompasso entre a previsão constitucional e o direito constitucional concretizado. Compreender 'provisória' como permanente, 'trinta dias' como mais de trinta dias, 'todos os recursos' como alguns recursos, 'ampla defesa' como restrita defesa, não é concretizar o texto constitucional. É, a pretexto de concretizá-lo, menosprezar seus sentidos mínimos. Essa constatação explica por que a doutrina tem tão efusivamente criticado algumas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal."
Mostra-se inaceitável a tendência de flexibilização dos direitos e garantias individuais. Hoje, mais do que antes, é preciso reconhecer que os Tribunais e, especialmente, o STJ, Tribunal da cidadania, dada a relevância dos precedentes, têm um papel determinante no sentido de não permitir que esse desvio de interpretação acabe prosperando.
É evidente que a Lei deve atender a um fim social e expressar os anseios da sociedade, como manifestação de legitimidade na concretização dos pressupostos da teoria tridimensional do inesquecível mestre Miguel Reale, na conjugação dos elementos FATO X VALOR X NORMA.
Contudo, a construção do sentido da lei, principalmente da norma penal incriminadora, deve ser observada com extremo cuidado e sob o diapasão da limitação do Poder estatal (jus puniendi) em face do cidadão.
O Direito Penal brasileiro consagrou, em suas premissas, as lições do Garantismo Penal, nos moldes traçados por Ferrajoli em seu Direito e Razão, à luz da Teoria Finalista da Conduta, que requerem a manifestação da vontade do agente como requisito necessário ao estabelecimento de sua culpa.
Adotar os fundamentos socializadores, próprios da Teoria da Imputação Objetiva, onde preponderam os requisitos de condutas de risco permitido e risco proibido, leva à quebra da
segurança jurídica que, assim, perde a certeza dos limites estabelecidos em defesa do cidadão.
É certo que, no Direito Penal da Culpa, não se pode fragilizar o escudo protetor do indivíduo em face do poder punitivo do Estado. Dá-se a prevalência do interesse da sociedade a partir das lições de Roxin e Jacobs, próprios da Imputação Objetiva, onde leva-se em consideração o valor que a sociedade, num determinado momento e sob um determinado aspecto, confere a uma conduta ou ao agente que a praticou.
A grande incursão nesta jornada conduz, impreterivelmente, à adoção de um Direito Penal do Inimigo, conforme proposto por Jakobs na década de 90.
Não se pode olvidar, é claro, do Caso Jean Charles na Inglaterra, onde os agentes públicos foram considerados inocentes do ato praticado, pela incidência de norma penal justificante, em razão da tensão e das circunstâncias estabelecidas na ação policial.
Não é por outro motivo que a doutrina e a jurisprudência consagraram a prevalência das garantias fundamentais em detrimento do poder punitivo estatal, como a presunção de não culpabilidade, a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, entre outros.
Como expressamente asseverado pelo eminente relator, no que diz respeito ao princípio da vedação à autoincriminação, o Excelso Pretório considera, de forma ampla, esta garantia, já tendo manifestado-se sobre o tema em diversas oportunidades, nas quais prevaleceu o direito fundamental sobre a necessidade da persecução estatal.
Ademais, repita-se, não é papel do intérprete-magistrado substituir a função do legislador, buscando, por meio da jurisdição, dar validade à norma que se mostra de pouca aplicação em razão da construção legislativa deficiente.
A prevalecer entendimento diverso teríamos que admitir um posicionamento absurdo, ou seja, o fechamento das casas legislativas, em violação flagrante ao princípio da separação de poderes, pois elas perderiam sua razão de existir, se o judiciário viesse a ceifar-lhes o poder de legislar.
Os tribunais devem preocupar-se em exercer o controle da legalidade e da constitucionalidade das leis, deixando ao legislativo a tarefa de legislar e de adequar as normas jurídicas às exigências da sociedade. Interpretações elásticas do preceito legal, efetivadas pelos juízes, ampliando-lhes o alcance, induvidosamente, violam o princípio da reserva legal, inscrito no art. 5º, inciso II, da Constituição de 1988: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
Pelo exposto, em divergência, NEGO PROVIMENTO ao recurso especial, para manter o acórdão recorrido, pelas razões elencadas e nos limites da fundamentação.
É o voto.
Confira clicando aqui a íntegra do voto a ser publicado no Diário da Justiça eletrônico.
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