Luiz Carlos Nogueira
DIREITO CIVIL - Responsabilidade Civil
Em decisão inédita, no dia 24 de
abril de 2012, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, deu parcial provimento ao
recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora Nancy Andrighi, para condenar um pai a indenizar sua filha em R$ 200.000,00,
por abandono afetivo, pois segundo a Relatora, “Amar é faculdade, cuidar é dever.”. De tal sorte enfatizou que por esse viés é possível
atribuir reparação por danos morais.
No caso a autora propôs uma ação
contra o seu pai, depois de haver conseguido judicialmente, o reconhecimento da
paternidade, sob o argumento de ter sofrido abandono material e afetivo durante
toda a sua infância e adolescência.
O Juizo singular julgou
improcedente o pedido, entendendo que a ausência do pai ocorreu por conta do
comportamento agressivo da mãe da autora, para com o pai.
Por sua vez o Tribunal de Justiça
de São Paulo (TJSP) a sentença, reconhecendo que houve o abandono afetivo e que
o pai em questão, por ser “abastado e próspero” deveria indenizar a
filha/autora, a importância de R$ 415.000,00 a titulo de reparação por danos
morais.
Irresignado, o pai recorreu ao
STJ alegando violação de diversos dispositivos do Código Civil além de a
sentença estar em divergência com outras decisões do tribunal. Afirmou ainda,
que ainda que tivesse abandonado a filha (o que não ocorreu), não existiu o
ilícito indenizável, porém, que se tivesse que ser punido por faltar com as
obrigações paterna, seria a perda do poder familiar.
Para ele, a única punição
possível pela falta com as obrigações paternas seria a perda do poder familiar.
Mas não foi assim que a ministra
relatora entendeu. Para ela não havia por que restringir a aplicação das regras
da responsabilidade civil, excluindo a reparação por danos morais nesse caso,
pois segundo ela: “Muitos, calcados em axiomas que se focam na existência de
singularidades na relação familiar – sentimentos e emoções –, negam a
possibilidade de se indenizar ou compensar os danos decorrentes do
descumprimento das obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores”
“Ao revés, os textos legais que regulam a matéria (art. 5,º V e X
da CF e arts. 186 e 927 do CC-02) tratam do tema de maneira ampla e irrestrita,
de onde é possível se inferir que regulam, inclusive, as relações nascidas
dentro de um núcleo familiar, em suas diversas formas.”, afirmou a relatora. Continuando confirma que: “Outro aspecto que merece
apreciação preliminar, diz respeito à perda do poder familiar (art. 1638, II,
do CC-02), que foi apontada como a única punição possível de ser imposta aos
pais que descuram do múnus a eles atribuído, de dirigirem a criação e educação
de seus filhos (art. 1634, II, do CC-02).”. “[...] a perda do pátrio poder não
suprime, nem afasta, a possibilidade de indenizações ou compensações, porque
tem como objetivo primário resguardar a integridade do menor, ofertando-lhe,
por outros meios, a criação e educação negada pelos genitores, e nunca
compensar osprejuízos
advindos do malcuidado recebido pelos filhos.”
Conheça o acórdão, na íntegra:
Superior Tribunal de
Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 - SP
(2009/0193701-9)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : ANTONIO CARLOS JAMAS DOS
SANTOS
ADVOGADO : ANTÔNIO CARLOS DELGADO LOPES E
OUTRO(S)
RECORRIDO : LUCIANE NUNES DE OLIVEIRA
SOUZA
ADVOGADO : JOÃO LYRA NETTO
EMENTA
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA.
ABANDONO AFETIVO.COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.
1. Inexistem restrições legais à aplicação
das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de
indenizar/compensar no Direito de Família.
2. O cuidado como valor jurídico objetivo
está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas
com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa
do art. 227 da CF/88.
3. Comprovar que a imposição legal de
cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de
ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que
atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação,
educação e companhia – cuidado – importa em vulneração da imposição legal,
exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais
por abandono psicológico.
4. Apesar das inúmeras hipóteses que
minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua
prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero
cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade,
condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.
5. A caracterização do abandono afetivo, a
existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem
revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na
estreita via do recurso especial.
6. A alteração do valor fixado a título de
compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em
que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou
exagerada.
7. Recurso especial parcialmente provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes
autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça,
na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos,
prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Paulo de Tarso
Sanseverino, a retificação de voto da Sra. Ministra Nancy Andrighi e a
ratificação de voto-vencido do Sr. Ministro Massami Uyeda, por maioria, dar
parcial provimento ao recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra
Relatora.
Votou vencido o Sr. Ministro Massami
Uyeda. Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo
Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 24 de abril de 2012(Data do
Julgamento)
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora
A informação
disponível não será considerada para fins de contagem de prazos recursais (Ato
nº 135 - Art. 6º e Ato nº 172 - Art. 5º)
Para
conferir este acórdão no sítio do STJ, clique neste link:
Conheça o teor do relatório e voto da
Relatora, na íntegra:
Superior Tribunal de
Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 - SP
(2009/0193701-9)
RECORRENTE : ANTONIO CARLOS JAMAS DOS
SANTOS
ADVOGADO : ANTÔNIO CARLOS DELGADO LOPES E
OUTRO(S)
RECORRIDO : LUCIANE NUNES DE OLIVEIRA
SOUZA
ADVOGADO : JOÃO LYRA NETTO
RELATÓRIO
Cuida-se de recurso especial interposto
por ANTONIO CARLOS JAMAS DOS SANTOS, com fundamento no art. 105, III, “a” e
“c”, da CF/88, contra acórdão proferido pelo TJ/SP.
Ação: de indenização por danos materiais e compensação por
danos morais, ajuizada por LUCIANE NUNES DE OLIVEIRA SOUZA em desfavor do recorrente,
por ter sofrido abandono material e afetivo durante sua infância e juventude.
Sentença: o i. Juiz julgou improcedente o pedido deduzido pela recorrida,
ao fundamento de que o distanciamento entre pai e filha deveu-se, primordialmente,
ao comportamento agressivo da mãe em relação ao recorrente, nas situações em
que houve contato entre as partes, após a ruptura do relacionamento ocorrido
entre os genitores da recorrida.
Acórdão: o TJ/SP deu provimento à apelação interposta pela recorrida,
reconhecendo o seu abandono afetivo, por parte do recorrente – seu pai
–, fixando a compensação por danos morais
em R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais), nos termos da seguinte
ementa:
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS
E MATERIAIS. FILHA HAVIDA DE RELAÇÃO AMOROSA ANTERIOR. ABANDONO MORAL E
MATERIAL. PATERNIDADE RECONHECIDA JUDICIALMENTE. PAGAMENTO DA PENSÃO ARBITRADA
EM DOIS SALÁRIOS MÍNIMOS ATÉ A MAIORIDADE. ALIMENTANTE ABASTADO E PRÓSPERO.
IMPROCEDÊNCIA. APELAÇÃO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
Superior Tribunal de
Justiça
Recurso especial: alega violação dos arts. 159 do CC-16
(186 do CC-02); 944 e 1638 do Código Civil de 2002, bem como divergência jurisprudencial.
Sustenta que não abandonou a filha,
conforme foi afirmado pelo Tribunal de origem e, ainda que assim tivesse
procedido, esse fato não se reveste de ilicitude, sendo a única punição legal
prevista para o descumprimento das
obrigações relativas ao poder familiar –
notadamente o abandono – a perda do respectivo poder familiar –, conforme o
art. 1638 do CC-2002.
Aduz, ainda, que o posicionamento adotado
pelo TJ/SP diverge do entendimento do STJ para a matéria, consolidado pelo
julgamento do REsp n º
757411/MG, que afasta a possibilidade de
compensação por abandono moral ou afetivo.
Em pedido sucessivo, pugna pela redução do
valor fixado a título de compensação por danos morais.
Contrarrazões: reitera a recorrida os argumentos
relativos à existência de abandono material, moral, psicológico e humano de que
teria sido vítima desde seu nascimento, fatos que por si só sustentariam a
decisão do Tribunal de origem, quanto ao reconhecimento do abandono e a fixação
de valor a título de compensação por dano moral.
Juízo prévio de admissibilidade: o TJ/SP admitiu o recurso especial (fls.
567/568, e-STJ). É o relatório.
Superior Tribunal de
Justiça
RECURSO ESPECIAL Nº 1.159.242 - SP
(2009/0193701-9)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : ANTONIO CARLOS JAMAS DOS
SANTOS
ADVOGADO : ANTÔNIO CARLOS DELGADO LOPES E
OUTRO(S)
RECORRIDO : LUCIANE NUNES DE OLIVEIRA
SOUZA
ADVOGADO : JOÃO LYRA NETTO
VOTO
Sintetiza-se a lide em determinar se o
abandono afetivo da recorrida, levado a efeito pelo seu pai, ao se omitir da prática
de fração dos deveres
inerentes à paternidade, constitui
elemento suficiente para caracterizar dano moral compensável.
1. Da existência do dano moral nas
relações familiares
Faz-se salutar, inicialmente, antes de se
adentrar no mérito propriamente dito, realizar pequena digressão quanto à
possibilidade de ser aplicada às relações intrafamiliares a normatização
referente ao dano moral.
Muitos, calcados em axiomas que se focam
na existência de singularidades na relação familiar – sentimentos e emoções –
negam a possibilidade de se indenizar ou compensar os danos decorrentes do descumprimento
das obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores.
Contudo, não existem restrições legais à
aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever
de indenizar/compensar, no Direito de Família.
Ao revés, os textos legais que regulam a
matéria (art. 5,º V e X da CF e arts. 186 e 927 do CC-02) tratam do tema de
maneira ampla e irrestrita, de onde é possível se inferir que regulam, inclusive,
as relações nascidas dentro de um núcleo familiar, em suas diversas formas.
Assim, a questão – que em nada contribui
para uma correta aplicação da disciplina relativa ao dano moral – deve ser
superada com uma interpretação técnica e sistemática do Direito aplicado à
espécie, que não pode deixar de ocorrer, mesmo ante os intrincados meandros das
relações familiares.
Outro aspecto que merece apreciação
preliminar, diz respeito à perda do poder familiar (art. 1638, II, do CC-02),
que foi apontada como a única punição possível de ser imposta aos pais que
descuram do múnus a eles atribuído, de dirigirem a criação e educação de seus
filhos (art. 1634, II, do CC-02).
Nota-se, contudo, que a perda do pátrio
poder não suprime, nem afasta, a possibilidade de indenizações ou compensações,
porque tem como objetivo primário resguardar a integridade do menor,
ofertando-lhe, por outros meios, a criação e educação negada pelos genitores, e
nunca compensar os
prejuízos advindos do malcuidado recebido
pelos filhos.
2. Dos elementos necessários à
caracterização do dano moral
É das mais comezinhas lições de Direito, a
tríade que configura a responsabilidade civil subjetiva: o dano, a culpa do
autor e o nexo causal. Porém, a simples lição ganha contornos extremamente
complexos quando se focam as relações familiares, porquanto nessas se
entremeiam fatores de alto grau de subjetividade, como afetividade, amor,
mágoa, entre outros, os quais dificultam, sobremaneira, definir, ou
perfeitamente identificar e/ou constatar, os elementos configuradores do dano
moral.
No entanto, a par desses elementos
intangíveis, é possível se visualizar, na relação entre pais e filhos, liame
objetivo e subjacente, calcado no vínculo biológico ou mesmo autoimposto –
casos de adoção –, para os quais há
preconização constitucional e legal de
obrigações mínimas.
Sendo esse elo fruto, sempre, de
ato volitivo, emerge, para aqueles que concorreram com o nascimento ou adoção,
a responsabilidade decorrente de suas ações e escolhas, vale dizer, a criação
da prole.
Fernando Campos Scaff retrata bem essa
vinculação entre a liberdade no exercício das ações humanas e a
responsabilidade do agente pelos ônus correspondentes:
(...) a teoria da
responsabilidade relaciona-se à liberdade e à racionalidade humanas, que impõe
à pessoa o dever de assumir os ônus correspondentes a fatos a ela referentes.
Assim, a responsabilidade é corolário da faculdade de escolha e de iniciativa
que a pessoa possui no mundo, submetendo-a, ou o respectivo patrimônio, aos
resultados de suas ações que, se contrários à ordem jurídica, geram-lhe, no
campo civil, a obrigação de ressarcir o dano, quando atingem componentes
pessoais, morais ou patrimoniais da
esfera jurídica de outrem.(Da
culpa ao risco na responsabilidade civil in: RODRIGUES JÚNIOR, Otávio
Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital da (coords.). Responsabilidade
civil contemporânea. São Paulo, Atlas, pag. 75)
Sob esse aspecto, indiscutível o vínculo
não apenas afetivo, mas também legal que une pais e filhos, sendo monótono o
entendimento doutrinário de que, entre os deveres inerentes ao poder familiar,
destacam-se o dever de
convívio, de cuidado, de criação e
educação dos filhos, vetores que, por óbvio, envolvem a necessária transmissão
de atenção e o acompanhamento do desenvolvimento sócio-psicológico da criança.
E é esse vínculo que deve ser buscado e
mensurado, para garantir a proteção do filho quando o sentimento for tão tênue
a ponto de não sustentarem, por si só, a manutenção física e psíquica do filho,
por seus pais – biológicos ou não.
À luz desses parâmetros, há muito se
cristalizou a obrigação legal dos genitores ou adotantes, quanto à manutenção
material da prole, outorgando-se tanta relevância para essa responsabilidade, a
ponto de, como meio de coerção, impor-se a prisão civil para os que a
descumprem, sem justa causa.
Perquirir, com vagar, não sobre o dever de
assistência psicológica dos pais em relação à prole – obrigação inescapável –,
mas sobre a viabilidade técnica de se responsabilizar, civilmente, àqueles que
descumprem essa incumbência, é a outra faceta dessa moeda e a questão central
que se examina neste recurso.
2.1. Da ilicitude e da culpa
A responsabilidade civil subjetiva tem
como gênese uma ação, ou omissão, que redunda em dano ou prejuízo para
terceiro, e está associada, entre outras situações, à negligência com que o
indivíduo pratica determinado ato, ou mesmo deixa de fazê-lo, quando seria essa
sua incumbência.
Assim, é necessário se refletir sobre a
existência de ação ou omissão, juridicamente relevante, para fins de
configuração de possível responsabilidade civil e, ainda, sobre a existência de
possíveis excludentes de culpabilidade incidentes à espécie.
Sob esse aspecto, calha lançar luz sobre a
crescente percepção do cuidado como valor jurídico apreciável e sua repercussão
no âmbito da responsabilidade civil, pois, constituindo-se o cuidado fator
curial à formação da personalidade do infante, deve ele ser alçado a um patamar
de relevância que mostre o impacto que tem na higidez psicológica do futuro
adulto.
Nessa linha de pensamento, é possível se
afirmar que tanto pela concepção, quanto pela adoção, os pais assumem
obrigações jurídicas em relação à sua prole, que vão além daquelas chamadas necessarium
vitae.
A ideia subjacente é a de que o ser humano
precisa, além do básico para a sua manutenção – alimento, abrigo e saúde –,
também de outros elementos,
normalmente imateriais, igualmente
necessários para uma adequada formação – educação, lazer, regras de conduta,
etc.
Tânia da Silva Pereira – autora e
coordenadora, entre outras, das obras Cuidado e vulnerabilidade e O
cuidado como valor jurídico – acentua o
seguinte:
O cuidado como 'expressão
humanizadora', preconizado por Vera Regina Waldow, também nos remete a uma
efetiva reflexão, sobretudo quando estamos diante de crianças e jovens que, de
alguma forma, perderam a referência da família de origem(...).a autora afirma:
' o ser humano precisa cuidar de outro ser humano para realizar a sua
humanidade, para crescer no sentido ético do termo. Da mesma maneira, o ser
humano precisa ser cuidado para atingir sua plenitude, para que possa superar
obstáculos e dificuldades da vida humana'. (Abrigo e alternativas de
acolhimento familiar, in: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de. O
cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 309)
Prossegue a autora afirmando, ainda, que:
Waldow alerta para atitudes de
não-cuidado ou ser des-cuidado em situações de dependência e carência que
desenvolvem sentimentos, tais como, de se sentir impotente, ter perdas e ser
traído por aqueles que acreditava que iriam cuidá-lo. Situações graves de
desatenção e de não-cuidado são relatadas como sentimentos de alienação e perda
de identidade. Referindo-se às relações humanas vinculadas à enfermagem a
autora destaca os sentimentos de desvalorização como pessoa e a
vulnerabilidade. 'Essa experiência torna-se uma cicatriz que, embora possa ser
esquecida, permanece latente na memória'. O cuidado dentro do contexto da
convivência familiar leva à releitura de toda a proposta constitucional e legal
relativa à prioridade constitucional para a convivência familiar . (op.
cit. pp 311-312 - sem destaques no original).
Colhe-se tanto da manifestação da autora
quanto do próprio senso comum que o desvelo e atenção à prole não podem mais
ser tratadas como acessórios no processo de criação, porque, há muito, deixou
de ser intuitivo que o cuidado, vislumbrado em suas diversas manifestações
psicológicas, não é apenas uma fator importante, mas essencial à criação e
formação de um adulto que tenha integridade física e psicológica e seja capaz
de conviver, em sociedade, respeitando seus limites, buscando seus direitos,
exercendo plenamente sua cidadania.
Nesse sentido, cita-se, o estudo do
piscanalista Winnicott, relativo à formação da criança:
[...]do lado psicológico, um bebê
privado de algumas coisas correntes, mas necessárias, como um contato afetivo,
está voltado, até certo ponto, a perturbações no seu desenvolvimento emocional
que se revelarão através de dificuldades pessoais, à medida que crescer. Por
outras palavras: a medida que a criança cresce e transita de fase para fase do
complexo de desenvolvimento interno, até seguir finalmente uma capacidade de
relacionação, os pais poderão
verificar que a sua boa assistência constitui um ingrediente essencial.
(WINNICOTT, D.W. A criança e o seu mundo. 6ª ed. Rio de Janeiro:LTC,
2008)
Essa percepção do cuidado como tendo valor
jurídico já foi, inclusive, incorporada em nosso ordenamento jurídico, não com
essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas
desinências, como se
observa do art. 227 da CF/88.
Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima
amplitude possível e, em paralelo, a cristalização do entendimento, no âmbito
científico, do que já era empiricamente percebido: o cuidado é fundamental
para a formação do menor e do adolescente; ganha o debate contornos mais
técnicos, pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor –
mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento,
de uma obrigação legal: cuidar.
Negar ao cuidado o status de
obrigação legal importa na vulneração da membrana constitucional de proteção ao
menor e adolescente, cristalizada, na parte final do dispositivo citado: “(...)
além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência (...)”.
Alçando-se, no entanto, o cuidado à
categoria de obrigação legal supera-se o grande empeço sempre declinado quando
se discute o abandono afetivo – a impossibilidade de se obrigar a amar. Aqui
não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de
cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou
adotarem filhos.
O amor diz respeito à motivação, questão
que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e
impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da
filosofia, da psicologia ou da religião.
O cuidado, distintamente, é tisnado por
elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação
e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas:
presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da
prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem
–, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador,
pelas partes.
Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever.
A comprovação que essa imposição legal foi
descumprida implica. por certo, a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de
omissão, pois na hipótese o non facere que atinge um bem juridicamente
tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de
cuidado – importa em vulneração da imposição legal.
Fixado esse ponto, impõe-se, ainda, no
universo da caracterização da ilicitude, fazer-se pequena digressão sobre a
culpa e sua incidência à espécie. Quanto a essa monótono o entendimento de que
a conduta voluntária está diretamente associada à caracterização do ato
ilícito, mas que se exige ainda, para a caracterização deste, a existência de
dolo ou culpa comprovada do agente, em relação ao evento danoso.
Eclipsa, então, a existência de ilicitude,
situações que, não obstante possam gerar algum tipo de distanciamento entre
pais e filhos, como o divórcio, separações temporárias, alteração de domicílio,
constituição de novas famílias, reconhecimento de orientação sexual, entre
outras, são decorrências das mutações sociais e orbitam o universo dos direitos
potestativos dos pais – sendo certo que quem usa de um direito seu não causa dano
a ninguém (qui iure suo utitur neminem laedit).
De igual forma, não caracteriza a
vulneração do dever do cuidado a impossibilidade prática de sua prestação e,
aqui, merece serena reflexão por parte dos julgadores, as inúmeras hipóteses em
que essa circunstância é verificada, abarcando desde a alienação parental, em
seus diversos graus – que pode e deve ser arguida como excludente de ilicitude
pelo genitor/adotante que a sofra –, como também outras, mais costumeiras, como
limitações financeiras, distâncias geográficas etc.
Todas essas circunstâncias e várias outras
que se possam imaginar podem e devem ser consideradas na avaliação dos cuidados
dispensados por um dos pais à sua prole, frisando-se, no entanto, que o
torvelinho de situações práticas da vida moderna não toldam plenamente a
responsabilidade dos pais naturais ou adotivos, em relação a seus filhos, pois,
com a decisão de procriar ou adotar, nasce igualmente o indelegável ônus
constitucional de cuidar.
Apesar das inúmeras hipóteses que poderiam
justificar a ausência de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua
prole, não pode o julgador se
olvidar que deve existir um núcleo mínimo
de cuidados parentais com o menor que, para além do mero cumprimento da lei,
garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada
formação psicológica e inserção social.
Assim, cabe ao julgador ponderar – sem
nunca deixar de negar efetividade à norma constitucional protetiva dos menores
– as situações fáticas que tenha à disposição para seu escrutínio, sopesando,
como ocorre em relação às necessidades materiais da prole, o binômio
necessidade e possibilidade.
2.2 Do dano e do nexo causal
Estabelecida a assertiva de que a
negligência em relação ao objetivo dever de cuidado é ilícito civil, importa,
para a caracterização do dever de indenizar, estabelecer a existência de dano e
do necessário nexo causal.
Forma simples de verificar a ocorrência
desses elementos é a existência de laudo formulado por especialista, que aponte
a existência de uma determinada patologia psicológica e a vincule, no todo ou
em parte, ao descuidado por parte de um dos pais.
Porém, não se deve limitar a possibilidade
de compensação por dano moral a situações símeis aos exemplos, porquanto
inúmeras outras circunstâncias
dão azo à compensação, como bem
exemplificam os fatos declinados pelo
Tribunal de origem.
Aqui, não obstante o desmazelo do pai em
relação a sua filha, constado desde o forçado reconhecimento da paternidade –
apesar da evidente presunção de sua paternidade –, passando pela ausência quase
que completa de contato com a filha e coroado com o evidente descompasso de
tratamento outorgado aos filhos posteriores, a recorrida logrou superar essas
vicissitudes e crescer com razoável aprumo, a ponto de conseguir inserção
profissional, constituir família, ter filhos, enfim, conduzir sua vida apesar
da negligência paterna.
Entretanto, mesmo assim, não se pode negar
que tenha havido sofrimento, mágoa e tristeza, e que esses sentimentos ainda
persistam, por ser considerada filha de segunda classe.
Esse sentimento íntimo que a recorrida
levará, ad perpetuam , é perfeitamente apreensível e exsurge,
inexoravelmente, das omissões do recorrente no exercício de seu dever de
cuidado em relação à recorrida e também de suas ações, que privilegiaram parte
de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in re ipsa e
traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação.
Dessa forma, está consolidado pelo
Tribunal de origem ter havido negligência do recorrente no tocante ao cuidado
com a sua prole – recorrida –.
Ainda, é prudente sopesar da consciência
do recorrente quanto as suas omissões, da existência de fatores que pudessem
interferir, negativamente, no relacionamento pai-filha, bem como das nefastas
decorrências para a recorrida dessas omissões – fatos que não podem ser
reapreciados na estreita via do recurso especial. Dessarte, impende considerar
existente o dano moral, pela concomitante existência da tróica que a ele
conduz: negligência, dano e nexo.
3. Do valor da compensação
Quanto ao valor da compensação por danos
morais, já é entendimento pacificado, neste Tribunal, que apenas
excepcionalmente será ele objeto de nova deliberação, no STJ, exsurgindo a
exceção apenas quanto a valores notoriamente irrisórios ou exacerbados.
Na hipótese, não obstante o grau das
agressões ao dever de cuidado, perpetradas pelo recorrente em detrimento de sua
filha, tem-se como demasiadamente elevado o valor fixado pelo Tribunal de
origem - R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais) - , razão pela qual o
reduzo para R$ 200,000,00 (duzentos mil reais), na data do julgamento realizado
pelo Tribunal de origem (26/11/2008 - e-STJ, fl. 429), corrigido desde então.
Forte nessas razões, DOU PARCIAL
PROVIMENTO ao recurso especial, apenas para reduzir o valor da compensação por
danos morais. Mantidos os ônus sucumbenciais.
Para
conferir este relatório e voto no sítio do STJ, clique neste link:
https://ww2.stj.jus.br/processo/jsp/revista/abreDocumento.jsp?componente=COL&sequencial=14828610&formato=PDF
A informação
disponível não será considerada para fins de contagem de prazos recursais
(Ato nº 135 - Art. 6º
e Ato nº 172 - Art. 5º)
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